Visto que o manto frisado que me cobre a cabeça tem vida própria e nem sempre colabora, esta manhã atrasei-me e saí de casa à pressa, sem tempo de ir à pilha dos ‘livros a modos que levezinhos para ler no comboio’. Como estou de greve às imposições académicas até logo à noite, também não fui à pilha dos ‘livros não tão levezinhos que me aborrecem de morte mas me obrigam a ler para poder fazer os testes’. Resulta portanto que só tinha o providencial Destak para me entreter no comboio. O Destak é porreiro porque é de borla e, embora esteja um pouco aborrecida por terem suprimido a rubrica do horoscopo, o que me complica a vida porque fico sem saber o que me vai acontecer durante o dia, sempre é melhor ter meia dúzia de páginas para ler do que página nenhuma. Sim, mesmo que um jornalista ache que ‘edílico’ é uma coisa bonita de se escrever. Adiante.
Como ainda ninguém me ofereceu um
IPAD (!), ao fim de três estações já o Destak
estava lido e relido e eu prostrada na janela, profundamente entediada. Logo
por azar estava tudo muito calmo, nenhuma conversa a que prestar atenção,
nenhum toque de telemóvel ridículo sobre o qual cuspir veneno...nada. Só quando
eu estou a tentar ler é que me entopem os ouvidos com parvoíces, mas claro,
quando não tenho nada para fazer também não colaboram para minorar o meu tédio.
Falsos!
Estava eu nestas considerações quando, de repente... VEJO-O!
Olho de novo. O cabelo impecável. O ar aprumado. Não há dúvida: é mesmo ele na plataforma. Vai entrar na minha carruagem! Agito-me. Sinto a centelha da vida irromper-me pelas veias desencantadas. Aguardo que suba a escada e venha até ao primeiro piso
(nós, os seres superiores, não viajamos
no piso inferior). Sobem duas simpáticas velhinhas e uma adolescente
desgrenhada (não vou desencantar-te já, amiga, mas só para que saibas, isso do cabelo
ter personalidade piora com a idade). Mas dele, nem sinal. NÃOOOOOOO! Ficou lá
em baixo, com as massas (blargh). Um contratempo. Mas nem tudo está perdido; o maquinista, Deus o guarde, está do meu lado e as estações desfilam
agora a velocidade estonteante. Concentro-me. Sei que ELE sai na mesma paragem do que eu, mas
com tanta gente não é garantido que o
consiga apanhar sem danos colaterais. O comboio pára. Finalmente. Precipito-me pela escada, sem
ceder passagem a ninguém. Estou focada. Quase lhe sinto o cheiro. Deus
colabora; saímos ao mesmo tempo da carruagem. Roço no seu casaco. É um bom
casaco. Um casaco caro. Decerto comprado com o dinheiro que recebeu do
Benfica em 2009 para inventar aquele miserável pénalti que
roubou a Taça de Portugal ao Sporting. Preparo o golpe, que se quer cirúrgico, e a parecer acidental. A mala da marmita, pesada de pescada em cama de legumes e
arroz branco com tomilho, retesa-se sob
a força controlada do meu mortal braço direito. Calma, miúda. Nervos de aço. Tu
consegues! No último segundo, um inocente atravessa-se entre nós. 'Sai, idiota,
sai!!!'. Ele não sai. A ocasião perde-se. MALDIÇÃAOOOOO!!!
Atrás de mim, o marido diverte-se com o meu ar contrariado. Diz-me: ‘então, não o mandaste escada abaixo?’. Rosno, entre dentes: ‘não consegui’. Ele abana a cabeça, com um meio sorriso. Já sabe que sou insana. Também sabe que este leão nunca esquece...
We shall meet again, Lucílio Batista.
MUAHAHAHAHHAHHAAHAHAHHAHAHAHAHAHAH...
Nota final da autora: esclarecem-se os passageiros da fertagus que viajaram esta manhã para Lisboa, incluindo o Exmo. Sr. Lucílio Batista, que em momento algum esteve a sua segurança comprometida. Os acontecimentos relatados são verídicos mas foram dramatizados por força da extraordinária capacidade criativa da autora que, pese embora aturadas reflexões sobre o assunto, ainda não conseguiu perceber por que não enveredou por uma carreira no disparate ficcional.
Mais, esclarece-se que as conclusões sobre a qualidade do casaco do senhor Lucílio Batista são verdadeiras, mas que se ignora com certeza a proveniência dos fundos usados para o adquirir e que a autora apenas sugere uma explicação.
Esclarece-se ainda que não tem a autora qualquer preconceito quanto aos passageiros que escolhem viajar no piso inferior, pese embora considere que sejam feridos de julgamento deficitário porque os lugares em cima são muito mais cool!
comodista!
ResponderEliminarpara quê esperar que as coisas aconteçam?
assim que ele entrou, sacavas das metralhadoras e ia caça-lo...
O Lucílio a andar de comboio? Coitado! Logo um homem que até teve direito a uma taça com o seu nome.
ResponderEliminarGostei do estilo policial e bem humorado do post!
Uma Agatha Christie perdida na Margem Sul?
Ahahah, um belo thriller policial! Sugiro o título: "O Misterioso Crime na Fertagus" Ou será que "Leoa empedernida strikes again!" fica melhor? :)))
ResponderEliminarBeijocas!